Na madrugada do dia 15 de abril, um ônibus clandestino com 46 passageiros, incluindo crianças, deixou o bairro do Brás, na regiçao central de São Paulo, em direção a cidades do interior dos estados de Pernambuco e da Paraíba.
Em sua maioria, os passageiros eram pessoas que, depois de construir a vida longe de sua cidade natal, perderam o emprego ou outras fontes de renda nos últimos meses.
Cada um deles desembolsou R$ 260 para fazer o caminho de volta, em uma viagem de dois dias -parte dela feita em estradas de barro para escapar das barreiras sanitárias que foram instaladas nas vias principais.
A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus impulsionou o movimento de migração de retorno de moradores de grandes centros do Sudeste, especialmente de São Paulo, para cidades do interior do Nordeste. O resultado desse movimento é um avanço dos casos da Covid-19 em pequenas cidades nordestinas.
Apenas na Bahia, pelo menos 20 cidades registraram o primeiro caso da doença após a chegada de pessoas do estado de São Paulo para a casa de suas famílias. Foi assim em cidades como Jussiape, Caetanos, Piritiba, Jaborandi, São Domingos e Santa Maria da Vitória, todas do interior baiano. O mesmo em outros estados da região, como na cidade de Padre Marcos (PI).
“Tem muita gente voltando para suas cidades de origem, o que fez as prefeituras redobrarem o nível de atenção. São pessoas que podem já vir com a doença ou podem ter se contaminado no caminho”, afirma o prefeito de Bom Jesus da Lapa e presidente da União dos Municípios da Bahia, Eures Ribeiro (PSD).
A suspensão do transporte de passageiros interestadual e intermunicipal foi uma das medidas adotadas pelos governos estaduais da região para reduzir o fluxo entre as cidades e tentar conter a disseminação da doença. Na Bahia, por exemplo, 196 das 417 cidades estão com o transporte suspenso.
Sem a opção do transporte de passageiros regular, muitas pessoas têm arriscado viajar em meios de transporte clandestinos –como ônibus, vans, carros de passeio e até caminhões. No interior na Bahia, equipes das barreiras sanitárias encontraram famílias inteiras amontoadas dentro de caminhões-baú.
Na cidade de Serrinha (a 183 km de Salvador), um caminhão apreendido levava, escondidas, 32 pessoas que haviam saído do Paraná, a mais de 2.000 km de distância dali, e enfrentariam no total mais de 3.000 km até seu destino final, no estado da Paraíba.
Um caso semelhante foi registrado na cidade de Irecê (480 km de Salvador), em que funcionários da barreira sanitária encontraram famílias que viajavam amontoadas dentro de um caminhão com parca ventilação.
De acordo com dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), pelo menos 300 ônibus clandestinos foram autuados nos últimos meses em rotas entre estados do Sudeste e do Nordeste nas rodovias federais. A estimativa é que esses ônibus tenham transportado cerca de 4.000 pessoas.
Em casos assim, informa a ANTT, os passageiros são encaminhados para veículos regulares para completar as viagens, com as custas pagas pela empresa flagrada trabalhando irregularmente.
A reportagem ouviu um motorista que costuma fazer a rota entre São Paulo e cidades como Afogados da Ingazeira, São José do Egito e Tabira, em Pernambuco, e Taperoá, no interior da Paraíba. O motorista, que preferiu não se identificar, conta que a procura pelo transporte clandestino aumentou bastante nos últimos meses.
Ele estima ter transportado mais de 500 pessoas apenas nos últimos 45 dias, sempre percorrendo rotas alternativas para evitar passar pelas barreiras sanitárias ou por bloqueios da polícia.
Antes das restrições no transporte de passageiros interestadual, o movimento também havia crescido no transporte regular. O motorista Genival Galdino, 51, que faz transporte regular de passageiros de São Paulo para o interior do Nordeste desde 1991, diz ter feito sua última viagem no final de março.
“Levei 50 pessoas para o sertão de Pernambuco. Gente que precisou fugir daqui de São Paulo porque não tem mais conseguido arrumar o que comer. Estão no meio da rua porque não podem mais pagar aluguel. Peguei um casal que estava passando fome mesmo”, afirma.
Galdino diz considerar ineficazes as medidas de restrição ao transporte de passageiros. “Daqui de São Paulo mesmo, sai todo dia ônibus, van, carro particular. Quem controla quando essas pessoas chegam lá no interior? Ninguém. Elas não são nem vistas, saem e chegam de madrugada”, afirma.
É o caso de José Agripino Fernandes, 47, que morava em São Paulo havia 23 anos e voltou para Serra Talhada, no sertão de Pernambuco, há cerca de 20 dias. Em São Paulo, já trabalhou de pedreiro, eletricista e, nos últimos dois anos, era ajudante de mecânico numa oficina do bairro da Mooca, na zona leste.
“O dono da oficina disse que não tinha como me pagar. Fiquei sem nada e voltei com uma filha pequena e minha esposa para recomeçar a vida onde nasci.” Agripino relata que, quando retornou de São Paulo, foi direto para um sítio de seus familiares na zona rural de Serra Talhada.
“Nos últimos dias, eu tive dor de cabeça e um pouquinho de tosse, mas minha mulher e minha filha não tiveram nada. Não sei se peguei essa doença”, diz o trabalhador.
A prefeitura de Serra Talhada informou que o fluxo de pessoas provenientes de São Paulo, nos últimos dias, registrou aumento. O poder público alega que tem tido dificuldade para fazer o mapeamento necessário ao enfrentamento da Covid-19 porque muitos desses passageiros chegam de maneira clandestina.
A preocupação é a mesma entre outros prefeituras da região. Em Xique-Xique, cidade de 46 mil habitantes do norte da Bahia, as barreiras da prefeitura já registraram a entrada de mais de 4.000 pessoas na cidade nos últimos dois meses. Mas a administração municipal estima que o número seja ainda maior.
“Para não passar barreiras, muita gente desce nos municípios vizinhos. De lá, eles arranjam um jeito de vir para nossa cidade e para os distritos”, afirma o prefeito Reinaldo Braga Filho (MDB).
Governo federal, governos estaduais e prefeituras informaram que têm intensificado a fiscalização. A ANTT alerta também para os riscos de contaminação para os passageiros desses meios de transportes clandestinos em meio à pandemia do coronavírus, já que estes não costumam cumprir os protocolos sanitários adotados pelas empresas regulares.
Enquanto a crise econômica se aprofunda, quem voltou para a terra de origem em busca de um porto seguro ainda não pensa em retornar aos grandes centros.
O eletricista Alexandre Alves de Góis, 46, que morava havia 20 anos no bairro do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo, agora está reformando uma pequena casa na zona rural do município pernambucano de Afogados da Ingazeira.
Góis trabalhava como prestador de serviços em várias obras de construção civil e tinha como principal cliente uma rede de escolas, que está fechada na quarentena. Sem renda, voltou para a terra da família junto com sua mulher. Lidiane Mendes da Silva, 33, está grávida.
O eletricista diz não ter planos de voltar para a capital paulista, pelo menos enquanto a pandemia não arrefecer. “Não dá para ficar em São Paulo pagando aluguel e sem dinheiro. Aqui, nós gastamos menos”, diz.
Folhapress