Castigos físicos e racionamento de comida, segregação e repressão sexual, doutrinação religiosa interferindo no cuidado médico. É assim a rotina em muitas instituições que acolhem dependentes químicos, e recebem dinheiro público. Essas e outras práticas, nas chamadas comunidades terapêuticas, são condenadas por especialistas e pelo Conselho Federal de Psicologia.

Sexta-feira, fim do mês passado, o Fantástico esteve em uma instituição que acolhe dependentes químicos perto da capital baiana.

“Cabelinho quer rapá. Vai procurar um jegue. Você nasceu foi macho, rapaz”, diz o deputado federal pastor Sargento Isidorio, do Avante, o mais votado nas últimas eleições na Bahia.

Ele afirma que pessoas transgênero são diabólicas: “Você deixou o Diabo lhe enganar. Você deixou o médico cortar seu pé de sofá. Ela só pensa que tem bilau. O Diabo diz ao homem que ele pode ser mulher, aí ele se veste todo, bota silicone”.

Com um facão na mão, ele zomba da medicina: “Meu psiquiatra chegou. Seu psiquiatra chegou”.

Durante dois meses de investigação, o Fantástico encontrou este e outros exemplos de descaso pela ciência no tratamento de dependentes químicos em instituições que recebem dinheiro público. Os repórteres estiveram em comunidades terapêuticas que dizem contar com psiquiatras, psicólogos e enfermeiros no atendimento a pacientes.

Mas, num estabelecimento no interior de Minas Gerais, a dependência química pode ser explicada assim: “Pode ser uma maldição. Geralmente os meninos que vêm de fora têm uma coisa de maldição ou de família, hereditária, de pai para filho, de avós, de décima geração”.

Na mesma instituição, internos contaram que cuidam da medicação de outros internos.

“Quaisquer remédios, em especial os tarja pretas mais conhecidos, têm riscos de sedação excessiva, depressão respiratória, até coma e morte”, destaca Débora Gomes Medeiros, psiquiatra e pesquisadora de saúde coletiva – Unicamp.

Em Salvador, monitores e ex-internos falam de uma rotina de castigos: “Três dias de arroz”.

Fantástico flagrou humilhações nesses locais e, também, repressão à orientação sexual dos dependentes químicos. Esse tipo de conduta no acolhimento de dependentes químicos é condenado por especialistas e pelo Ministério Público, inclusive com denúncias de violação dos direitos humanos.

As chamadas comunidades terapêuticas recebem dependentes em álcool e drogas que têm que se internar por livre e espontânea vontade. Em geral, são instituições privadas, mas sem fins lucrativos. Algumas cobram matrícula e mensalidade, outras oferecem vagas gratuitas, financiadas com dinheiro público ou doações. As comunidades existem no Brasil desde a década de 70 e vêm crescendo muito nos últimos cinco anos.

“Acredita-se que existam hoje perto de 80 mil pessoas acolhidas, e perto de 5 a 6 mil comunidades terapêuticas espalhadas por todo o Brasil. Algumas acabam usando o nome de comunidade terapêutica, mas não são”, afirma Ricardo Valente, psicólogo e diretor da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas.

A federação representa 300 comunidades. As comunidades investigadas pelo Fantástico não são filiadas.

O período de internação e o programa de acolhimento variam de instituição para a instituição, mas, segundo estudiosos, todas partem do mesmo princípio.

“As comunidades terapêuticas brasileiras têm como âncora do seu trabalho o tripé ‘trabalho, disciplina e espiritualidade’”, diz Débora Gomes Medeiros, psiquiatra e pesquisadora de saúde coletiva – Unicamp.

Um tripé questionado pela ciência. “Os transtornos por substâncias são um problema multifatorial com determinantes biológicos, psicológicos e sociais, com uma variedade muito grande entre os casos. Não existe solução que sirva para todos os casos”, afirma a psiquiatra.

Ao longo dos anos, as comunidades terapêuticas têm recebido cada vez mais dinheiro público, repassado por municípios, estados e pela União. Em 2019, somente do Ministério da Cidadania, que é o responsável pelo programa de comunidades terapêuticas, saíram mais de R$ 81 milhões. No ano passado, o valor chegou a R$ 134 milhões, um aumento de 65%.

Nesse mesmo período, na rede de atendimento psicossocial a dependentes de álcool e drogas do SUS, os chamados CAPS AD, o aumento foi de 11%.

Fonde: G1