Visual para o dia da visita na prisão, preparação do jumbo para o marido e relato das cartas que recebe são compartilhados por Letícia Nascimento, 27, no TikTok, rede social na qual ela soma mais de 100 mil seguidores.
Ela e outras cunhadas —termo utilizado por mulheres de presos, pois os encarcerados se consideram irmãos— produzem conteúdo para as redes sociais em que apresentam a rotina com vídeos curtos. Neles, tentam mostrar da felicidade após uma visita íntima aos dias de tristeza que passam longe do marido.
A reportagem conversou com três mulheres com perfil semelhante que vivem em diferentes cidades. As três são jovens, se dizem apaixonadas, têm filhos pequenos e são responsáveis financeiramente por garantir os advogados dos companheiros e os jumbos, cesta de produtos autorizados pela administração penitenciária para serem enviados pela família.
É comum encontrar vídeos ao som de funks como “Casa de Pedra”, do MC Bobô, que diz “uma etapa lá no sofrimento, só sabe mesmo quem passou lá dentro” e posts acompanhados de hashtags como #MulherDePreso, #LiberaOPresoSeuJuiz, #CantaLiberdade e #AmorAtrasDasGrades.
Os parceiros sabem do conteúdo que elas postam e costumam achar engraçado ou enxergam até uma possibilidade de elas conseguirem alavancar uma carreira como influenciadora digital —algumas já fazem em seus perfis parcerias com marcas de maquiagem ou serviços de beleza.
Casada com Matheus desde agosto de 2021, a auxiliar de dentista Letícia diz que a cerimônia ocorreu quase como pede o script: teve festa e ela estava acompanhada da família. “Só faltou o noivo”, ri ela que lembra que o cônjuge não pôde comparecer por estar encarcerado. O dia também foi compartilhado nas redes.
É no estilo “rir é o melhor remédio” que Letícia Nascimento conta um pouco da rotina na rede social. Ela mesma declara preferir tirar sarro dos seus problemas. Afinal, o fardo de manter o relacionamento com alguém preso já é pesado o suficiente.
O que Letícia não imaginou foi que o conteúdo se tornaria viral. Ela conta que, às vezes, quando chega à penitenciária, agentes brincam com frases como “a famosinha da nossa cadeia” ou “vai fazer seus vídeos no TikTok?”
A auxiliar de dentista atribui os altos números de visualizações à curiosidade das pessoas sobre o que existe por trás das grades. Letícia lembra que, quando era mais nova e sabia que algum programa de TV mostraria presídios, era a primeira a ligar. “A curiosidade que eu tinha, as meninas também têm. Então, eu mostro tudo.”
Apesar das imagens alegres que posta nas redes, Letícia afirma que, desde que o marido foi preso há dois anos, passou a ser medicada com antidepressivo. “Eu penso que tem duas pessoas que precisam de mim, o Enzo [seu filho de oito anos, fruto de um relacionamento passado] e o Matheus.”
Ela afirma que é a única que ajuda o marido tem e calcula que gasta cerca de metade do salário com os custos da prisão dele, que incluem o jumbo e as viagens que faz para visitá-lo a cada 15 dias —ele está preso em uma penitenciário em Balbinos, a quase 400 quilômetros de Carapicuíba, cidade na Grande São Paulo onde Letícia vive.
Em um dos vídeos, ela comenta a solidão e a falta de ajuda de amigos do marido desde que ele foi preso. “Salve é fácil de mandar, mas ajudar com uma pasta de dente ninguém ajuda”, lamenta ela.
Professor de sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dmitri Cerboncini Fernandes analisa que os conteúdos postados de certa forma humanizam as pessoas que costumam ser desumanizadas pela sociedade.
“Os posts mostram o lado do preso pai, amoroso, desejo das mulheres que querem que eles retornem a boa vida. Há uma espécie de identificação que é o contrário de programas policiais que sempre colocam de costas, cabeça baixa”, afirma ele.
Fabio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que os posts podem servir como uma espécie de contribuição para mostrar que essas pessoas existem. “É importante para despertar empatia por quem está encarcerado, muitas vezes presos por crimes sem violência ou grave ameaça.”
Caroline Freitas, 23, também mantém um perfil com esse tipo de conteúdo e reúne mais de 90 mil seguidores e quase dois milhões de curtidas. Ela nota dois tipos de público: um que está ali por curiosidade; e outro que torce por ela e pelo namorado preso por roubo e furto. “É uma distração para eu não passar o dia inteiro só sofrendo. Ao menos, algumas meninas veem a dor e dão apoio.”
Ela, que vive em Capão Bonito, interior de São Paulo, vai visitar o marido a cada 15 dias. Agora, ele foi transferido para Iperó, que fica a 130 quilômetros da cidade dela. Caroline, que trabalha no setor de vendas com os pais, diz que já desembolsou mais de R$ 10 mil com o namorado preso, por quem ela paga advogado, viagens para visitá-lo e jumbo.
“Ele fala que vai arrumar emprego quando sair para recompensar tudo o que eu faço por ele”, diz a jovem, que percebe bastante curiosidade dos seguidores sobre as penitenciárias. “Como é lá dentro” e até “onde ela guarda os pertences” são as mais recorrentes.
Quando os vídeos viralizam, porém, ela costuma receber uma chuva de críticas, como comentários irônicos como “ele é um anjinho”. Em casa, a mãe dela não apoia o relacionamento. “Nenhuma mãe quer ver a filha no presídio, mas ela fica com a minha filha quando eu vou visitar.”
Para a designer de unhas Amanda Dias, 23, a visita é diferente e bem mais restrita do que para as outras mulheres. No TikTok, rede em que ela soma quase 280 mil seguidores e mais de três milhões de likes, ela conta que, diferentemente da maioria, só tem 15 minutos para ver o marido a cada 15 dias e sempre no parlatório.
No dia que falou com a reportagem, no último dia 12, ela classificou como “um dia feliz” porque pode tocar no companheiro pela primeira vez no ano durante a visita no pátio. Na rede social, ela contou o episódio para as seguidoras emocionada.
“Eu tava com tempo vago, mente a milhão, pensei ‘vou fazer vídeo para entreter minha cabeça'”, afirma ela. Para começar, postou sobre o casamento, que foi oficializado para ela conseguir visitá-lo em uma penitenciária na cidade de São Mateus, no Espírito Santo, a uma hora de Braço do Rio, onde ela vive.
A recepção na rede social assustou. “Recebi mensagens dizendo que era para ele morrer lá dentro, pessoas diziam que mulher de bandido tem que morrer e me chamaram de marmita de preso.”
Mas ela diz que não liga para os comentários e vê um lado bom nos conteúdos que posta, como mulheres que mandam mensagem e relatam que o marido também foi preso e pedem ajuda do que fazer. “Eu consigo aconselhar elas porque muitas meninas caem em depressão quando eles são presos.”
Amanda avalia que não tem problema em mostrar a rotina porque é a sua realidade “e a de muita gente”. “Isso pode servir de exemplo para muita gente, tem quem veja o real sofrimento quando a gente posta.”
Fonte: Bahia Notícias