A menos de 20 dias de ter que deixar a Casa Branca depois de ter sido derrotado nas urnas por Joe Biden, o presidente Donald Trump fez um novo esforço para tentar reverter a vitória do democrata ao pressionar o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, a “encontrar” votos suficientes a seu favor.
Desta vez, entretanto, os apelos do líder republicano beiram o desespero e, de acordo com analistas jurídicos, a ilegalidade e a imoralidade. O caso veio à tona a partir de uma reportagem publicada pelo Washington Post na tarde deste domingo (3).
O jornal americano teve acesso à gravação de uma ligação telefônica entre Trump e Raffensperger, realizada no sábado (2). De acordo com o material obtido, em cerca de uma hora de conversa, o presidente repreendeu o secretário, depois tentou bajulá-lo, implorou por ajuda e o ameaçou com consequências criminais vagas.
Biden derrotou Trump na Geórgia ao receber 2.473.633 votos, equivalentes a 49,5% do total. O republicano ficou com 2.461.854 (49,3%), marcando uma diferença de exatos 11.779 votos.
“Veja, tudo o que eu quero fazer é isso: só quero encontrar 11.780 votos, um a mais do que nós temos [de diferença]. Porque nós ganhamos o estado [da Geórgia]”, disse Trump na ligação, contrariando os números oficiais da eleição.
Uma das funções do secretário de Estado na Geórgia é supervisionar o processo eleitoral e ratificá-lo.
?”O povo da Geórgia está com raiva, as pessoas do país estão com raiva. E não há nada de errado em dizer que você recalculou”, pediu o presidente, mantendo a narrativa de que o pleito foi fraudado, embora as cédulas da Geórgia já tenham sido recontadas duas vezes e certificado a vitória de Biden.
“Então me diga, Brad, o que vamos fazer?”, perguntou Trump, chamando o secretário de Estado pelo primeiro nome. “Vencemos a eleição e não é justo tirar isso de nós assim. Isso vai sair muito caro de várias maneiras. E eu acho que você tem que dizer que você vai reexaminar, e você pode reexaminar, mas reexaminar com pessoas que querem encontrar respostas.”
Em várias ocasiões, Raffensperger defendeu a legitimidade da eleição em seu estado, mas ouviu do presidente que o pleito “nem chegou perto” de ser justo e preciso. Trump repetiu várias vezes que ganhou a votação na Geórgia com vantagem de centenas de milhares de votos, embora seus argumentos tenham se baseado em teorias conspiratórias e desinformação.
“Bem, sr. Presidente, o desafio que o senhor tem é que os dados que o senhor tem estão errados”, disse o secretário.
Além de Trump e Raffensperger, havia outras pessoas participando da chamada. Com o secretário, estava seu conselheiro jurídico, Ryan Germany; com o presidente estavam, entre outros, o chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, e a proeminente advogada republicana Cleta Mitchell.
Em um comunicado, Mitchell disse ao Washington Post que o gabinete de Raffensperger “fez muitas declarações nos últimos dois meses que simplesmente não são corretas”. Desde as primeiras contagens de votos na Geórgia, o secretário, que também é republicano, tem defendido publicamente a legitimidade dos processos de votação e apuração no estado.
Neste domingo (3), horas antes da publicação da reportagem, Trump usou o Twitter para dizer que havia conversado com o secretário de Estado sobre o que ele tem chamado de fraudes.
“Ele [Raffensperger] não queria ou não conseguia responder a perguntas como o golpe das ‘cédulas embaixo da mesa’, destruição de cédulas, ‘eleitores’ de fora do estado, eleitores mortos e muito mais. Ele não tem ideia!”, escreveu o presidente -a publicação foi marcada pelo Twitter como “conteúdo contestável”.
O secretário de Estado, por sua vez, compartilhou o comentário do presidente, mas fez um adendo. “Respeitosamente, presidente Trump: o que você está dizendo não é verdade. A verdade virá à tona.”
Ainda durante a conversa por telefone, Trump lançou acusações sobre uma suposta destruição de cédulas em um condado da Geórgia -outra alegação não corroborada por evidências- e tentou imputar a Raffensperger e Germany responsabilidade criminal pela suposta fraude.
“Isso é uma ofensa criminal”, disse o presidente. “E você não pode deixar isso acontecer. Isso é um grande risco para você e para Ryan, seu advogado.”
O líder americano também disse ao secretário que, caso ele se omitisse a respeito do que seus aliados veem como irregularidades no pleito, colocaria em risco a sorte política de David Perdue e Kelly Loeffler, dois senadores republicanos da Geórgia cujo destino no segundo turno das eleições determinará se o Senado americano continuará sob controle do partido.
“Você tem uma grande eleição chegando e por causa do que você fez ao presidente…você sabe, o povo da Geórgia sabe que isso foi uma farsa”, disse Trump. “Por causa do que você fez ao presidente, muitas pessoas não vão votar, e muitos republicanos vão votar contra, porque odeiam o que você fez ao presidente. OK? Eles odeiam isso. E eles vão votar. E você seria respeitado, realmente respeitado, se isso pudesse ser corrigido antes da eleição.”
Em outro momento da conversa, Raffensperger disse que Trump tem um problema com a mídia social, em que “as pessoas podem dizer qualquer coisa”.
O presidente se defendeu. “Oh, isso não é mídia social. Esta é a mídia Trump. Não é mídia social, realmente não é. Eu não me importo com a mídia social, eu não poderia me importar menos.”
Ao longo da ligação, Trump se mostrou zangado e impaciente em alguns momentos, referindo-se ao secretário de Estado como “criança” e chamando-o de “desonesto ou incompetente” por não acreditar que houve fraude generalizada em Atlanta, capital do estado.
Germany, conselheiro jurídico de Raffensperger, aceitou se reunir com os advogados de Trump para discutir as acusações, mas o presidente parece ter percebido que falhou em persuadir seus interlocutores.
“Sei que esta ligação não vai a lugar algum”, disse, pouco antes de encerrar a conversa, ao que o secretário respondeu: “Obrigado, presidente Trump, pelo seu tempo”.
Ouvidos pelo Washington Post, analistas jurídicos viram a conversa como um território legalmente questionável. Ao exortar o secretário de Estado a “encontrar” votos e abrir caminho para pessoas que “queiram encontrar respostas”, Trump parece estar encorajando-o a adulterar o resultado das eleições na Geórgia.
Para Edward Foley, entretanto, a transgressão mais clara do presidente é de âmbito moral. O professor de direito na Universidade do Estado de Ohio afirmou que o conteúdo da ligação é “inadequado e desprezível” e deveria provocar indignação.
“Ele [Trump] já estava acionando o medidor de emergência”, disse Foley. “Em uma escala de 1 a 10, estávamos em 12, e agora estamos em 15.”