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Desnazificação e genocídio: a história por trás da justificativa de Putin para invasão da Ucrânia

Ao anunciar que iniciaria uma “operação militar especial” contra a Ucrânia, durante a madrugada desta quinta-feira, 24/2, o líder russo Vladimir Putin justificou sua ação pela necessidade de “desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia”.

“Tomei a decisão de realizar uma operação militar especial. Seu objetivo será defender as pessoas que há oito anos sofrem perseguição e genocídio pelo regime de Kiev. Para isso, visaremos a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”, afirmou Putin em um discurso televisionado, ao mesmo tempo em que mísseis e forças armadas russas iniciavam uma incursão que a autoridade ucraniana afirma ter atingido todas as regiões do país em ao menos 70 pontos diferentes, como aeroportos e portos, e já ter matado mais de 130 pessoas.

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O movimento russo é um desfecho dramático para uma crise geopolítica internacional que se desenrolou nos últimos 4 meses, quando Putin começou a instalar suas forças militares na região da fronteira com a Ucrânia.

Inicialmente, o presidente russo se dizia preocupado com a segurança nacional do país dada a expansão da aliança militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no leste europeu. Putin queria garantias de que a Ucrânia não seria admitida na aliança – o que, em tese, permitiria aos EUA instalar bases militares na região vizinha ao território russo.

Contudo, ao acusar o atual governo ucraniano, comandado pelo presidente judeu Volodymyr Zelensky, de ser nazista – sem qualquer prova disso -, Putin extrapola preocupações atuais e práticas com a segurança do país e mobiliza uma série de conceitos e eventos históricos na região e que, de acordo com os especialistas, o ajudaria a justificar para o mundo e especialmente para o povo russo as ações militares contra um povo igualmente eslavo.

Putin evoca as memórias coletivas dos ataques de Adolf Hitler na Europa, especialmente da invasão dos nazistas contra a então União Soviética, e a noção de genocídio e limpeza étnica contra um povo – nesse caso, contra os separatistas russos na Ucrânia – e tenta caracterizar seus atos não como agressão a um outro país, como o acusam Ucrânia, EUA e Europa Ocidental, mas como uma tentativa de defesa.

“A Segunda Guerra Mundial é ainda hoje uma parte importante da cultura e da política russa, e a falsa afirmação de que o governo ucraniano hoje é como o governo aliado nazista da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial ou o Exército de Libertação Ucraniano (o grupo que lutou ao lado dos nazistas) é uma tentativa de moldar a opinião russa em relação ao atual governo ucraniano”, afirmou à BBC News Brasil Adam Casey, cientista político especialista em Rússia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

De onde vem a noção de que o atual governo ucraniano é nazista?

É impossível entender as referências feitas por Putin sem voltar algumas décadas na História. Se, por um lado, o modo como o Exército Vermelho, da União Soviética, combateu e derrotou as tropas nazistas alemãs na Segunda Guerra Mundial ainda mobiliza o imaginário dos russos e seu orgulho nacional, de outro lado, a reação de ao menos parte dos seus vizinhos ucranianos em relação a Hitler segue sendo motivo de hostilidade entre russos e ucranianos.

Quando o exército nazista adentrou as áreas ucranianas, em 1941, uma parte da população optou por colaborar com os alemães, enquanto boa parte do país foi varrida por sofrimento e destruição. Mais de 5 milhões de ucranianos morreram combatendo os nazistas, que mataram a maior parte dos 1,5 milhão de judeus ucranianos.

A ocupação alemã durou até 1944, e os ucranianos que se engajaram na cooperação com os alemães nazistas atuaram na administração local, se tornaram parte da polícia nazista ou viraram guardas em campos de concentração. O governo civil alemão nazista foi batizado de Reichskommissariat Ukraine, ou RKU, e compreendia o que hoje se divide entre o território da Ucrânia, Belarus e Polônia.

Uma das figuras mais proeminentes – e controversas – desse nacionalismo colaboracionista ucraniano foi Stepan Bandera, que primeiro atuou para facilitar o domínio dos nazistas na região e depois se voltou contra eles, quando percebeu que seu plano de independência da Ucrânia não se concluiria. Bandera passou anos em um campo de concentração nazista e acabaria assassinado por um agente da KGB em 1959.

Por trás da colaboração com os nazistas, estava um desejo de independência de parte dos ucranianos e a crença de que os alemães poderiam ser o caminho para se livrar do líder soviético Joseph Stálin.

Esse sentimento foi catapultado por outro evento histórico que recém completou 90 anos: o Holodomor, ou Fome-Terror ou ainda Grande Fome, um período em que, de acordo com a estimativa do historiador Timothy Snyder, da Yale University, cerca de 3,3 milhões de pessoas morreram de fome. Há, no entanto, quem diga que esse número foi até 3 vezes maior que a estimativa de Snyder.

Embora a fome tenha atingido a União Soviética como um todo nesse período, especialmente por políticas econômicas do regime de Stálin, os ucranianos – e outros 15 países – consideram Holodomor um genocídio. Isso porque, de acordo com alguns historiadores, a fome na Ucrânia teria sido muito pior do que a no restante da região por uma decisão deliberada de Stálin de remeter menos recursos à região e proibir o deslocamento das pessoas em busca de alimentos. O líder soviético teria tomado a decisão de punir e pressionar o campesinato ucraniano, que resistia a ceder suas férteis propriedades agrícolas ao controle do Estado, como ordenava o regime soviético.

O Holodomor virou um trauma coletivo que ainda assombra a Ucrânia, mesmo 90 anos após os acontecimentos, e que serviu de combustível para o sentimento antissoviético que Bandera encarnou nos anos 1930 e 1940.

Mas por que a história de Bandera importa agora, quase um século depois?

A resposta está nos acontecimentos detonados em 2013, quando o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que comandava um governo pró-Rússia, cedeu à pressão de Putin e se recusou a assinar um pacto de aproximação do país com a União Europeia, algo que a maioria dos ucranianos desejava.

A decisão do presidente fez irromper protestos populares pelo país. Em um deles, na Praça Maidan, na capital ucraniana Kyev, estima-se que 100 mil pessoas se manifestaram. Após meses de tensão, em 2014, Yanukovych fugiu para a Rússia e acabou deposto.

“Essa referência a nazistas e neonazistas se tornou muito proeminente na mídia russa por volta de dezembro de 2013, porque, na época dos protestos da Praça Maidan, alguns dos manifestantes faziam coisas como hastear uma bandeira de (Stepan) Bandera, um nacionalista ucraniano que, temporariamente, durante a Segunda Guerra Mundial, cooperou com os nazistas para tentar buscar a independência ucraniana. Há um segmento da população ucraniana que relembra aquelas tentativas de alcançar a independência ucraniana sob (Joseph) Stalin, aliando-se a Hitler, não como uma colaboração com o nazi-fascismo, mas como a atuação de patriotas ucranianos e heróis nacionais”, explicou à BBC News Brasil Brian Taylor, professor de Ciência Política da Syracuse University e autor de The Code of Putinism (O Código do Putinismo, em tradução livre).

A Rússia retaliou a derrubada de Yanukovych tomando a Crimeia e desencadeando uma rebelião no leste ucraniano liderada por separatistas apoiados pela Rússia — o confronto contra as forças ucranianas já custou 14 mil vidas. Nesse período, algumas milícias de extrema-direita passaram a atuar para repelir os separatistas russos. São grupos como o Pravy Sektor e o Azov Battalion, que costumam empunhar bandeiras de Bandera, a quem Putin chama de “cúmplice de Hitler” e que hoje detém status de “herói nacional ucraniano”. Nenhum desses grupos extremistas, no entanto, jamais conseguiu eleger parlamentares para o Congresso Nacional ucraniano nem tem representantes no Executivo.

“A Ucrânia não é controlada por nazistas ou fascistas, apesar do crescimento de grupos ultra nacionalistas e fascistas nos últimos anos – um problema global não específico da Ucrânia. Na verdade, o governo democraticamente eleito da Ucrânia é comandado por um presidente judeu, Volodymyr Zelensky, cujos tios-avôs e outros membros da família foram assassinados durante o Holocausto”, afirmou à BBC News Brasil a historiadora Amy Randall, da Santa Clara University, na Califórnia, especialista em Rússia.

Na noite desta quarta-feira (23/2), depois de tentar se comunicar com Putin e ser ignorado repetidamente, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi à TV e se dirigiu em russo à população da Rússia, a quem apelou para que impedissem o Kremlin de prosseguir com um ataque. Em seu discurso emocionado, Zelensky abordou as acusações de que seu governo é nazista, o que viria a ser repetido por Putin horas mais tarde, no momento do anúncio da operação militar.

“Dizem a vocês (russos) que somos nazistas. Mas pode um povo que deu mais de oito milhões de vidas pela vitória sobre o nazismo apoiar os nazistas? Como posso ser nazista? Explique isso ao meu avô, que passou por toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel na Ucrânia independente”, afirmou Zelensky.

Os especialistas em Rússia, no entanto, apontam que a utilização por Putin desse tipo de argumento junto à população tende a acessar o emocional da população russa e faz parte de um movimento maior do líder de mobilização de apoio popular.

“Esta retórica de desnazificação é poderosa porque evoca a memória do imenso sofrimento e vitória final do povo soviético durante a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos, Putin intensificou deliberadamente a comemoração da “Grande Guerra Patriótica”, como a Segunda Guerra Mundial é conhecida na Rússia, promovendo o Dia da Vitória como o feriado mais importante e usando a guerra para aumentar o orgulho nacionalista entre os russos”, afirma Randall.

Do mesmo modo, alertam os especialistas, o uso do termo genocídio por Putin, para caracterizar uma falsa situação de aniquilamento da população russa na Ucrânia apela ao mesmo tipo de sentimento. De acordo com Brian Taylor, o recurso ao termo “genocídio” para justificar incursões militares russas em áreas vizinhas não é novidade na política internacional de Putin. “Em 2008, ele fez o mesmo com a Geórgia e, em 2014, na Crimeia”, afirma Taylor.

De fato, existe um conflito nas áreas separatistas de Donetsk e Lugansk desde 2014, em que separatistas russos financiados pelo governo russo enfrentam forças do Exército ucraniano, e que já resultou na morte de 14 mil pessoas.

Mas há também uma guerra de desinformação em curso na área. Em 2015, uma equipe da BBC mostrou como, na região de Donetsk, onde apenas emissoras de televisão russas transmitiam programas desde 2014, a história da morte de uma garota russa, de 10 anos, em um bombardeio ucraniano foi inteiramente inventada. Jornalistas da mídia russa, responsáveis por reportar a história, admitiram à BBC que a menina jamais existiu. “Nós tivemos que transmitir isso”, afirmaram os profissionais russos à BBC.

“O genocídio é uma grave acusação – e que a comunidade internacional leva a sério. Neste caso, é claro, nenhum genocídio está ocorrendo. Mas a pretensão de ser o protetor do mundo russo, por assim dizer, é uma justificativa comum para a política externa de Putin, e essa acusação infundada de genocídio reforça sua afirmação para o público doméstico de que ele é o protetor dos russos étnicos em toda a antiga União Soviética”, afirma Casey.

Fonte: BBC

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